
O linguarudo sem sorte
Publicação em 03.11.20Ilustração de Gerson Kauer

O cidadão está com dor de garganta crônica em meio ao clima hibernal. Valendo-se, então, de seu plano de saúde, procura atendimento por especialista, em notória clínica. Os procedimentos iniciais são os de rotina. No recôndito do consultório, o médico logo determina:
- Abra a boca e espiche a língua.
O paciente acede e o médico elogia monossilábico:
- Hummmm!...
Em seguida, nova orientação do laringologista:
- Deite-se na maca para melhor avaliação!
O consulente atende.
- Novamente abra a boca e de novo espiche a língua – continua o médico.
Imediatamente ocorre o inusitado. Relata a petição inicial que “o médico, então, toca no órgão viril do ora autor, a quem pede licença para que pudesse alisá-lo”.
O paciente salta da maca e se põe porta afora. Mas – estranho – volta, nas semanas seguintes, mais duas vezes à mesma clínica, para novas consultas e repetições de exames. Nessa terceira ida leva uma câmera oculta que grava um ato masturbatório. As cenas, porém - ainda segundo a petição inicial - ficam irreprodutíveis, em face de “um defeito técnico ocorrido quando na tentativa de transferir as imagens gravadas para um CDRom que serviria de prova”.
A ação judicial por dano moral pede R$ 500 mil, mas termina em decisão de improcedência, concluindo que, “pela doutrina da responsabilidade extracontratual, teria o autor que comprovar o agir culposo ou doloso do médico - o que não há nos autos”.
Em sede de apelação, os desembargadores afinam com a conclusão da sentença: “Há impossibilidade de acolher a pretensão indenizatória amparada na alegação de ter o autor sido vítima de abuso sexual pelo médico, quando a própria narrativa do paciente dá a entender o seu consentimento quanto à ocorrência da libidinagem alegadamente havida”.
Já há trânsito em julgado. Na comarca a chacota agora também alcança o cliente. A ação foi para o arquivo. Mas o processo deixou um codinome: “O linguarudo sem sorte”.