
A doutrina jurídico-musical de Lupicínio Rodrigues e João Gilberto
Publicação em 10.11.20Imagens: Freepik - Joao Gilberto: Divulgação via Sul21 - Lupicinio: Blog vidanovametabolica

A esposa, apaixonadíssima pelo marido, ao chegar em casa, encontra-o no leito conjugal, em escancarada intimidade com a sua melhor amiga. Incontinente, pega uma espingarda e ceifa a vida do seu cônjuge. No júri popular, os jurados acolhem a tese defensiva de “homicídio simples, com a presença da violenta emoção, logo após, injusta provocação da vítima”.
O Ministério Público de primeiro grau apela, pretendendo levar a acusada novamente a júri, por homicídio qualificado.
A procuradora de justiça - além de contundente parecer escrito pelo provimento do apelo - faz uma sustentação oral candente, em prol do provimento ao recurso.
O presidente (e também relator) começa a falar sobre os pecados da alma. No voto, ele avalia que ela, a esposa, “na realidade, estava arrependida, e sua dor era tão grande que, certamente, se acaso fosse possível voltar atrás, jamais praticaria tal delito, pois o que quisera fora simplesmente acabar com a dor que invadia seu coração”.
O julgador então busca anotações e lembra “Nervos de Aço”, música de Lupicínio Rodrigues:
“Você sabe o que é ter um amor, meu senhor /
Ter loucura por uma mulher /
E depois encontrar esse amor, meu senhor /
Nos braços de um tipo qualquer...”
E por aí se vai, lendo todas as rimas. Ao final, compara: “Se Lupicínio Rodrigues tivesse, nos versos, substituído a expressão ´uma mulher´ pela palavra ´alguém´, a rima branca se assentaria como uma luva ao caso”.
O desembargador revisor acompanha.
Mas o julgador vogal suscita versos de João Gilberto em sentido contrário:
“Aos pés da Santa Cruz, você se ajoelhou /
Em nome de Jesus, um grande amor você jurou /
Jurou, mas não cumpriu, fingiu e me enganou /
Pra mim, você mentiu /
Pra Deus, você pecou”.
Por dois votos a um, é negado provimento à apelação do Ministério Público, mantendo a condenação por homicídio simples. Proclamado o resultado, chama a atenção, na plateia da câmara criminal, uma mulher cabisbaixa.
Ela veste cinza e preto, e chora copiosamente. É a outrora esposa enganada - assassina - viúva - denunciada, que aguarda em liberdade o julgamento de segundo grau.
Anos depois fica-se sabendo que, com bom comportamento, ela cumpriu sua pena. E que - em regular liberdade - mudou-se para longe, sem deixar pistas.
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(Sintetizado a partir de um conto escrito pelo magistrado Gilberto de Paula Pinheiro, em “A Justiça Além dos Autos”, publicação do CNJ).