ACÓRDÃO 0021277-54.2019.5.04.0007 (PJe)
Publicação em 15.11.20ACÓRDÃO
0021277-54.2019.5.04.0007 (PJe)
DESEMBARGADOR MARCELO JOSÉ FERLIN D AMBROSO
Órgão Julgador: 8ª Turma
Polo Ativo: KETHLEEN CATIUCIA DA SILVA RIOS
Adv. Jivago Augusto Ely Temes
Polo Passivo: COMPANHIA ZAFFARI COMERCIO E INDUSTRIA -
Adv. João Luís Kleinowski Pereira, Adv. Stefano Marth Coletto
Origem: 7ª Vara do Trabalho de Porto Alegre
Prolatora da Sentença: JUIZA LUCIANA CARINGI XAVIER
E M E N T A
NULIDADE DA SENTENÇA. ARQUIVAMENTO DO FEITO. IMPOSIÇÃO INDEVIDA DE CUSTAS RELACIONADAS A PROCESSO ANTERIOR COMO CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE, COM BASE EM NORMA REPUTADA INCONSTITUCIONAL E
INCONVENCIONAL.
VIOLAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA.
POSTERIOR BLOQUEIO INDEVIDO DE VALORES EM CONTA DA TRABALHADORA.
INFRAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DIRETORES SOBRE EMPRESAS E DIREITOS HUMANOS PELO ESTADO BRASILEIRO (JUSTIÇA
DO TRABALHO) E DECRETO 9571/18.
DESCULPAS PÚBLICAS DEVIDAS PELO PODER JUDICIÁRIO.
- O comando que atribui à parte autora o ônus de
pagamento das custas como condição de
procedibilidade em ajuizamento de nova demanda,
mesmo quando beneficiária da justiça gratuita, viola o
direito humano de acesso à justiça, previsto no art. 14 do
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(Decreto nº 592/92) e no art. 25.1, da Convenção
Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica - Decreto nº 678/92), que foram
fundamentalizados na Constituição da República de
1988 nos princípios da assistência judiciária integral e
gratuita e do acesso ao judiciário (art. 5º, XXXV e
LXXIV). 2. Cassação liminar do bloqueio de valores
efetivado na conta da trabalhadora com determinação
de devolução imediata da quantia à demandante. Grave
violação de Direito Humano perpetrada pelo próprio
Estado via Poder Judiciário, na forma do PIDCP (art.14),
CADH (art. 25.1) e Decreto n.º 9.571/18 (art. 3º, inciso I,
alíneas "a" e "b", inciso II, inciso IV, alínea "b" e inciso
IX). 3. Decreto n.º 9.571/2018, que estabelece a
responsabilidade social do Estado no que concerne à
adoção de medidas de reparação à violação de direitos
humanos, sendo devidas desculpas públicas à
trabalhadora, com base nos arts. 13, VII, b, e 15, I, do
Decreto em epígrafe, ante o constrangimento decorrente
da violação do direito humano de acesso à justiça e
bloqueio indevido de valores realizado por esta Justiça
do Trabalho. 5. O Direito do Trabalho deve ser aplicado
como instrumento de garantia de promoção da
dignidade humana e não ao revés, sendo que a ação
que o acompanha deve estar acessível de forma gratuita
a todas as pessoas, não podendo obstáculos opostos
por lei manifestamente inconstitucional e inconvencional
ser transformados em barreiras que, mais além de
impedirem o acesso à justiça, o inibem, inviabilizando
por completo a efetividade dos direitos econômicos,
sociais e culturais e a possibilidade de realização de
uma vida digna por parte das pessoas que integram a
classe despossuída, a classe trabalhadora. Recurso
provido para decretar a nulidade da sentença e o regular
processamento do feito.
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos os autos.
ACORDAM os Magistrados integrantes da 8ª Turma do Tribunal
Regional do Trabalho da 4ª Região: por unanimidade, CONFIRMAR A
DECISÃO LIMINAR que determinou a cassação da ordem de bloqueio da
conta bancária da trabalhadora e o consequente cancelamento da ordem
de emissão do alvará de ID. 45dd37f proferida na demanda (0020489-
40.2019.5.04.0007), devendo o valor bloqueado ser restituído à parte
autora. Por unanimidade, DAR PROVIMENTO AO RECURSO DA PARTE
AUTORA, KETHLEEN CATIUCIA DA SILVA RIOS, para reconhecer a
nulidade da decisão proferida pelo juízo da origem, na qual determinado o
arquivamento do feito, determinando-se a baixa do processo para regular
processamento, observada a necessária celeridade processual, mediante
inclusão em pauta preferencial. Isenta-se a autora de custas, ficando vetada
a imposição, a ela, de despesas processuais. Por unanimidade, ainda,
DECLARAR, INCIDENTALMENTE, A INCONSTITUCIONALIDADE DA
COISA JULGADA NOS AUTOS DO PROCESSO 0020489-
40.2019.5.04.0007, tornando-a sem efeitos em relação à condenação da
autora em despesas processuais, proibindo-se sua cobrança. Registram-se
desculpas públicas à parte autora pelo constrangimento sofrido pelo
impedimento do acesso à justiça e bloqueio indevido de valores atinente às
custas ilegalmente impostas. Sem valor da condenação.
Intime-se.
Porto Alegre, 26 de outubro de 2020 (segunda-feira).
R E L A T Ó R I O
Inconformada com a sentença que extinguiu o processo sem resolução de
mérito (ID. b0d5a8e), prolatada pela MMª. Juíza, Dra. Luciana Caringi
Xavier, recorre a parte autora (ID. 311bfe6).
O recurso ordinário da demandante versa sobre nulidade da sentença.
Com contrarrazões da ré (ID. 4fe7599), vêm os autos a este Tribunal para
julgamento.
Em 22/10/2020, foi proferida liminar referente ao processo de n.º 0020489-
40.2019.5.04.0007, que apresenta conexão com a presente ação
trabalhista.
Processo não submetido à análise prévia do Ministério Público do
Trabalho.
É o relatório.
V O T O
DESEMBARGADOR MARCELO JOSÉ FERLIN D AMBROSO
(RELATOR):
Relação de emprego: A autora foi admitida em 17/09/2018 para exercer a
função de empacotadora (ID. 720505a - pág. 03).
Valor atribuído à causa: R$ 69.091,90.
1. LIMINAR DEFERIDA NOS AUTOS DO PROCESSO 0020489-40.2019.5.04.0007.
Inicialmente, registro que este Relator, em decisão liminar proferida em
22/10/2020, determinou a cassação da ordem de bloqueio da conta
bancária da trabalhadora e, por conseguinte, o cancelamento da ordem de
emissão do alvará de ID. 45dd37f, em favor da Fazenda Nacional, relativa
ao processo trabalhista de n.º 0020489-40.2019.5.04.0007, que apresenta
conexão com a presente ação, distribuída por prevenção à Vara de origem.
Eis a referida ordem liminar proferida no ID. f5fe6ec:
"(...) A ação trabalhista nº 0020489-40.2019.5.04.0007 foi
ajuizada sob a égide da Lei 13.467/17.
Dentre as várias alterações promovidas pelo legislador na
chamada "Reforma Trabalhista", destaca-se o novo dispositivo
processual, art. 844 da CLT, parágrafos 2º e 3º, que assim
dispõe:
"Artigo 844 da CLT: O não-comparecimento do reclamante à
audiência importa o arquivamento da reclamação, e o não comparecimento do reclamado importa revelia, além de
confissão quanto à matéria de fato.
[...]
§ 2o Na hipótese de ausência do reclamante, este será
condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do
art. 789 desta Consolidação, ainda que beneficiário da justiça
gratuita, salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a
ausência ocorreu por motivo legalmente justificável.
§ 3o O pagamento das custas a que se refere o § 2o é condição
para a propositura de nova demanda."
Sem adentrar, neste momento, na manifesta inconstitucionalidade
(art. 5º, XXXVI) e inconvencionalidade da reforma (violação da
Convenção Americana de Direitos Humanos, PIDCP, PIDESC
e outros tratados internacionais), ao
realizar consulta no sítio eletrônico deste Tribunal
(https://pje.trt4.jus.br/consultaprocessual/detalheprocesso/00204894020195040007),
verifica-se que na anterior ação, a Julgadora de origem fixou as custas no valor
de R$ 1.181,84, ante a ausência injustificada da parte autora à
audiência inicial, ocasionando o arquivamento da ação
trabalhista.
Entretanto, a autora, ao propor a presente demanda, referiu que
não possuía condições de arcar com as custas do processo.
Ademais, registre-se que na ação trabalhista ajuizada
anteriormente a demandante também apresentou declaração de
pobreza.
Como se não bastasse a declaração de pobreza firmada pela
demandante, observa-se que a Magistrada de origem
determinou a "citação da autora para pagamento das custas",
por Oficial de Justiça, pasme-se, além de ter determinado o
bloqueio de valores da conta bancária da autora nos dias
19/05/2020 e 05/06/2020, oportunidades em que foram
localizadas e penhoradas as quantias de R$166,47 e R$421,51,
respectivamente. Por fim, foi determinada a expedição de alvará
à Fazenda Nacional em 21/10/2020, no valor de R$587,98.
Ora, a autora apresentou declaração de pobreza e a sua CTPS
demonstra que foi contratada para receber salário de R$937,00
para exercer a função de empacotadora.
Nesse aspecto, de forma objetiva, pode-se afirmar que realizar o
bloqueio de R$587,98 da conta bancária de uma trabalhadora
humilde, com repasse à Fazenda Nacional é uma ato de
desrespeito à dignidade da pessoa humana e aos preceitos
constitucionais expressos na Constituição da República. É mais,
prima facie constata-se lesão grave ao direito humano de
acesso à justiça, conforme previsto no PIDCP (Decreto n.º
592/92):
Art. 2.1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se
a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em
seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos
reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por
motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica,
nascimento ou qualquer condição.
...
3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a:
a) Garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades
reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa de
um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido
perpetrada por pessoas que agiam no exercício de funções
oficiais;
b) Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu
direito determinado pela competente autoridade judicial,
administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade
competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em
questão; e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;
No mesmo sentido, o art. 8º da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e o art. 25 da Convenção Americana de
Direitos Humanos (Decreto 678/92):
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a
qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais
competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos
fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela
presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida
por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções
oficiais.
2. Os Estados Partes comprometem-se:
a. a assegurar que a autoridade competente prevista pelo
sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa
que interpuser tal recurso;
b. a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes,
de toda decisão em que se tenha considerado procedente o
recurso.
Como se não bastasse, a autora foi dispensada da parte ré em
17/09/2018, conforme TRCT juntado no processo que deu
origem à cobrança de custas. Logo, considerando que o país
enfrenta uma das maiores crises econômicas e sanitárias das
últimas décadas, é possível (e bastante provável) que tenha sido
retirado dessa trabalhadora quantia essencial ao seu sustento
familiar.
Nesse sentido, a Jurisdição ao exercer a interpretação das
alterações realizadas pela Lei n.º 13.467/2017, lei da Reforma
Trabalhista, não pode ignorar os princípios que norteiam o
Direito do Trabalho, nem muito menos os Direitos Humanos.
Afinal, não se pode negar que o Direito, como ciência, é formado
por regras e princípios, e a lei se submete ao controle de
legalidade (constitucionalidade e convencionalidade) e
legitimidade. A interpretação literal da lei sem reflexão quanto ao
conteúdo e efeitos sociais, pode ofender a dignidade da pessoa
humana.
Não em demasia, registro que o presente caso nem sequer
envolve conflitos de princípios, pois houve violação direta ao
direito da trabalhadora quanto ao livre acesso ao Judiciário,
conforme inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República.
Nestes termos, a aplicação "a ferro e fogo" do previsto no art.
844 da Lei n.º 13.467/2017, a fim de cobrar da trabalhadora
beneficiária da Justiça Gratuita as custas processuais, e ainda
condicionar o ajuizamento de nova ação ao preenchimento de
tal requisito, cria obstáculo ao livre acesso à justiça, justamente
para quem não tem condições financeiras e que ainda postula
nesta justiça especializada o reconhecimento de créditos de
natureza indisponível e irrenunciável, que são os créditos de
natureza alimentar, objeto das suas demandas, cuja tramitação
segue frustrada, mais de ano após o primeiro ajuizamento.
Portanto, a aplicação da reforma trabalhista deve passar por
crivo de valoração de legalidade e legitimidade que impeçam
seja oposta à classe trabalhadora como embaraço formal ao
sagrado Direito Humano de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CR),
que para violações a direitos fundamentais (como os direitos
trabalhistas) e para pessoas que não tem recursos, deve ser
sempre gratuito.
O processo deve servir como meio de instrumentalização do
direito material, sendo absolutamente contrária aos Tratados
Internacionais versando sobre Direitos Humanos a interpretação
que obsta ou dificulta o acesso da pessoa trabalhadora ao
Judiciário e inviabiliza a efetivação do bem da vida vindicado e a
reparação ao direito violado (lembrando que direitos trabalhistas
são Direitos Humanos, na forma do art. 11 da Convenção sobre
a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher - Decreto 4377/02).
Nesse sentido, retirar a quantia de R$587,98 de uma
trabalhadora, que apenas exerceu seu direito constitucional de
livre acesso ao Judiciário, para buscar reparação a Direitos
Humanos do Trabalho violados, principalmente durante o
período em que o Brasil e o Estado do Rio Grande do Sul
encontram-se em estado de calamidade pública, também viola
muitos aspectos jurídicos relacionados à própria constituição do
Estado Democrático de Direito.
(...)
Assim, considerando que a análise da presente demanda
possui vinculação direta com o decidido nos autos do processo
0020489-40.2019.5.04.0007, tendo havido inclusive a
distribuição por dependência à presente ação, com o intuito de
evitar maiores danos aos direitos da demandante, com base no
poder geral de cautela previsto no art. 798 do CPC, determino a
cassação da ordem de bloqueio da conta bancária da
trabalhadora e o consequente cancelamento da ordem de
emissão do alvará de ID. 45dd37f proferida na referida demanda
(0020489-40.2019.5.04.0007), devendo o valor bloqueado ser
restituído à parte autora, com urgência. Caso tenha havido
recolhimento dos valores a contas da Fazenda Nacional, a Vara
de origem deverá envidar todos os esforços necessários para a
reversão e restituição do dinheiro à autora, no menor tempo
possível.
Intime-se e notifique-se a Magistrada de origem do inteiro teor
desta decisão, COM URGÊNCIA.
Determino a reunião dos processos 0020489-40.2019.5.04.0007
e 0021277-54.2019.5.04.0007 para apreciação conjunta dos
fatos.
A matéria objeto do recurso ordinário interposto pela parte no
presente feito será objeto de julgamento em sessão colegiada já
aprazada para 26/10/2020."
Frisa-se que o processo de n.º 0020489-40.2019.5.04.0007, no qual
realizada a cobrança irregular de custas, tem conexão direta com a
presente ação (que repete aquela, arquivada, gerando, inclusive,
distribuição por prevenção de juízo, reconhecida no primeiro grau),
originando a imposição ilegal de custas como condição de procedibilidade
neste feito.
Assim, considerando que a decisão que fundamentou a cobrança ilegal de
custas da trabalhadora teve por fundamento o art. 844, §§2º e 3º, da CLT,
este último dispositivo declarado inconstitucional pelo Tribunal Pleno deste
Regional, em sessão do dia 12/12/2018, não há falar em coisa julgada, eis
que a decisão mostra-se inconstitucional e contrária ao efeito erga omnes
que emana da decisão desta Corte, retirando eficácia à referida norma.
Portanto, se a coisa julgada acoberta decisão inconstitucional e que viola o
já decidido com efeito erga omnes por esta Corte, não há falar em sua
validade, uma vez que não se sustenta a ofensa nela contida aos princípios
constitucionais da moralidade e legalidade, em nome de uma suposta
segurança jurídica. Ao contrário, a segurança jurídica se estabelece pelo
respeito ao julgado por este Tribunal com efeito erga omnes.
Por adequado, citam-se as palavras do processualista Cândido Rangel
Dinamarco, que ensina o seguinte, em relação à coisa julgada
inconstitucional e a excepcionalidade de avaliação de tais decisões
viciadas:
(...) a ordem constitucional não tolera que se eternizem
injustiças a pretexto de não eternizar litígios (...). Propõe-se
apenas um trato extraordinário destinado a situações
extraordinárias com o objetivo de que providências
destinadas a esse objetivo devem ser tão excepcionais
quanto é a ocorrência desses graves inconvenientes. (...)."
(Relativizar a Coisa Julgada Inconstitucional. In: NASCIMENTO,
Carlos Valder do (org.). Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de
Janeiro: América Jurídica, 2003, pág. 72). (grifou-se)
Na mesma linha, destaca-se outra passagem do referido jurista, na obra
"Instituições de Direito Processual Civil":
"A coisa julgada material tem, acima de tudo, o significado
político-institucional de assegurar a firmeza das situações
jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional. (...) Pelo
que significa na vida das pessoas em suas relações com os
bens da vida ou com outras pessoas, a coisa julgada tem por
substrato ético-político o valor da segurança jurídica, que
universalmente se proclama como indispensável à paz entre os
homens ou grupos. Esse valor de primeira grandeza, alçado à
dignidade constitucional mediante a garantia do respeito à
coisa julgada, só não pode prevalecer quando a estabilidade
do julgado significar imutabilidade de situações de
contrariedade a outros valores humanos, éticos ou políticos
de igual ou maior porte. (...)" (São Paulo, Editora Malheiros,
2005, pág. 300) (grifou-se)
Nesse aspecto, por oportuno, citam-se, ainda, as palavras do Exmo. Min.
Ricardo Lewandowski sobre a relativização dos efeitos da coisa julgada,
tema amplamemente debatido pela Suprema Corte nos últimos anos,
principalmente com a vigência do CPC de 2015, o qual passou a
estabelecer, de forma expressa, diversos mecanismos de revisão da coisa
julgada material:
"(...) A coisa julgada não pode ser encarada como um valor
absoluto, pois às vezes deriva de decisões teratológicas ou
encontra fundamento em falhas ou fraudes grosseiras (STF.
Revista Consultor Jurídico, Anuário da Justiça Brasil, 2011: O
Poder da última palavra. São Paulo: Conjur Editorial, p. 51).
Diante do exposto, como a decisão relacionada ao processo de n.º
0020489-40.2019.5.04.0007, proferida pela Magistrada de origem, adotou,
como razões de decidir, o dispositivo 844, §§2º e 3º, especialmente norma
declarada inconstitucional pelo Tribunal Pleno deste Regional,
reconhece-se, de forma incidental, a coisa julgada inconstitucional do processo em
epígrafe, por haver violação direta ao princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III), e por desrespeito aos demais alicerces principiológicos
estabelecidos na Constituição da República relativos à justiça social,
combate à desigualdade e discriminação. Não há falar, portanto, em coisa
julgada material no que refere à demanda supracitada, nos termos do art.
5º, XXXV e XXXVI, da Constituição da República, c/c arts. 4º, 5º, 6º e 502
do CPC.
Isto posto, confirmo a decisão liminar proferida na qual restou determinada
a cassação da ordem de bloqueio da conta bancária da trabalhadora e o
consequente cancelamento da ordem de emissão do alvará de ID. 45dd37f
proferida na demanda (0020489-40.2019.5.04.0007), devendo eventual
valor remanescente bloqueado ser restituído à parte autora, com urgência,
vetando-se novas cobranças.
2. NULIDADE DA SENTENÇA. ARQUIVAMENTO DO FEITO.
IMPOSSIBILIDADE DE PAGAMENTO DE CUSTAS RELACIONADAS A
PROCESSO ANTERIORMENTE EXTINTO POR AUSÊNCIA DA
AUTORA À AUDIÊNCIA.
Insurge-se a autora contra a decisão de origem que extinguiu o processo,
sem resolução de mérito, tendo em vista a ausência de comprovação
referente ao recolhimento de custas a si atribuídas no que diz respeito ao
processo nº 0020489-40.2019.5.04.0007, considerando-se, no caso, a sua
ausência injustificada à audiência inicial designada para o processo
supracitado, que ocorreu em 16/10/2019.
Ao exame.
A ação trabalhista ajuizada anteriormente, processo de nº 0020489-
40.2019.5.04.0007, fora ajuizada sob a égide da Lei n.º 13.467/17, também
chamada "reforma trabalhista".
Dentre as várias alterações promovidas na chamada "reforma trabalhista",
destaca-se o dispositivo processual contido no art. 844 da CLT, §§ 2º e 3º,
que dispõe o seguinte:
Art. 844 CLT: O não-comparecimento do reclamante à audiência
importa o arquivamento da reclamação, e o não comparecimento do
reclamado importa revelia, além de confissão quanto à matéria de fato.
[...]
§ 2o Na hipótese de ausência do reclamante, este será
condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do
art. 789 desta Consolidação, ainda que beneficiário da justiça
gratuita, salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a
ausência ocorreu por motivo legalmente justificável.
§ 3o O pagamento das custas a que se refere o § 2o é condição
para a propositura de nova demanda. " (grifei)
Inicialmente, ao realizar consulta no sítio eletrônico deste Tribunal
(https://pje.trt4.jus.br/consultaprocessual/detalheprocesso/00204894020195040007),
verifica-se que, na anterior ação, a autora deste feito, ao propor aquela
demanda trabalhista (assim como a atual), referiu que não possuía condições
de arcar com as custas do processo, inclusive apresentou declaração de pobreza.
A Julgadora de origem fixou as custas no valor de R$1.181,84, ante a
ausência injustificada da parte autora, arquivando a ação trabalhista
anterior e, não obstante tenha reconhecido a hipossuficiência da autora,
não se absteve de cobrar, nestes autos, a quantia imposta a título de custas.
Ocorre que este Tribunal, em sua composição plenária, declarou, na sessão
do dia 12/12/2018, a inconstitucionalidade do §2º do art. 844 da CLT
quanto à expressão "ainda que beneficiário da justiça gratuita", bem como
do §3º do mesmo dispositivo, quando dispõe que "o pagamento das custas
a que se refere o §2º é condição para a propositura de nova demanda".
Segue ementa:
INCONSTITUCIONALIDADE DOS PARÁGRAFOS 2º E 3º DO
ARTIGO 844 DA CLT. O comando que atribui à parte
reclamante, ainda que beneficiária da justiça gratuita, o ônus de
pagamento das custas como condição para a propositura de
nova demanda, repercute como violação aos princípios da
assistência judiciária integral e gratuita e do acesso ao judiciário,
traduzidos nos incisos e LXXIV e XXXV da Constituição Federal.
Declara-se a inconstitucionalidade do parágrafo 2º do artigo 844
da CLT quanto à expressão ainda que beneficiário da justiça
gratuita, bem como do parágrafo 3º do mesmo dispositivo,
quando prevê que o pagamento das custas a que se refere o §
2º é condição para a propositura de nova demanda. Nesse
aspecto, a aplicação do art. 844 da Lei n.º 13.467/2017, a fim de
cobrar do trabalhador beneficiário da Justiça Gratuita as custas
processuais, e ainda condicionar a propositura de nova ação ao
preenchimento de tal requisito, cria obstáculo ao livre acesso à
justiça, justamente para quem não tem condições financeiras e
que ainda pleiteia nesta justiça especializada o reconhecimento
de créditos de natureza indisponível e irrenunciável, que são os
créditos de natureza alimentar, objeto da ação.
Como se sabe, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade realizada
por controle difuso de constitucionalidade pelos juízos e tribunais retiram a
eficácia da norma viciada. Assim, a Magistrada da origem não poderia ter
aplicado as referidas normas, revestindo-se o ato de exigência de
pagamento de custas como condição de procedibilidade deste feito, e
posterior cobrança com bloqueio judicial de valores em conta bancária, de
absoluta ilegalidade e desrespeito à decisão desta Corte.
Não bastasse, o regramento da dita "reforma trabalhista" deve ser
interpretado de forma sistemática e não se pode admitir nenhuma
possibilidade de embaraço formal ao direito humano de acesso à justiça,
sob pena do processo de trabalho não cumprir sua função instrumental de
concretização/efetividade de direito material, sobretudo quando se trata de
Direitos Humanos do Trabalho ditos violados no curso de relação de
trabalho que motivam a demanda. A obstaculização do acesso à justiça à
pessoa trabalhadora é prática totalmente contrária ao art. 14 do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592/92), e ao art.
25.1, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José
da Costa Rica - Decreto nº 678/92), o qual estabelece que:
"Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a
qualquer outro recurso efetivo, perante os juízos ou tribunais
competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos
fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela
presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida
por pessoas que estejam atuando no exercícios de suas funções
oficiais".
E segundo o art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos, não há
espaço para nenhum tipo de interpretação restritiva do amplo acesso à
justiça.
Com efeito, os direitos econômicos, sociais e culturais estão
fundamentalizados como cláusula pétrea nos arts. 6º a 11 da Constituição
da República, cujo art. 5º, XXXV, também contempla o princípio do amplo
acesso à justiça como garantia fundamental (direito humano), revestindo-se
a ação trabalhista e o processo do trabalho como instrumentos de
concretização dos Direitos Humanos do Trabalho.
O direito ao acesso à justiça para o fim de vindicar direitos trabalhistas é,
portanto, um Direito Humano duplamente fundamentalizado, tanto no art. 5º,
XXXV, quanto no art. 7º, XXVIII, da Constituição da República e, nesta
condição, recebe o tratamento dedicado previsto na proteção jurídica da
CADH, que o amplia para conferir simplificação, efetividade e celeridade,
características incompatíveis com as normas impostas pela reforma
trabalhista e com a conduta adotada pela Magistrada de 1º grau ao aplicar
a legislação doméstica sem considerar o indispensável e prévio controle de
constitucionalidade e convencionalidade da Lei 13467/17.
Assim, por qualquer prisma que se observe o caso, a decisão da origem
reveste-se da mais absoluta ilegalidade, ferindo de morte o direito humano
de acesso à justiça, impossibilitando que a trabalhadora, de humildes
condições, obtenha do Estado a proteção necessária para a reparação dos
seus direitos humanos ditos violados no curso da relação de trabalho.
Nessa esteira, também foi desrespeitado pelo Estado o teor do Decreto n.º
9.571/18, o qual estabelece as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e
Direitos Humanos, determinando a aplicação, dentre outros instrumentos,
dos Princípios Diretores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU,
estabelecidos no tripé respeitar, preservar e reparar. Neste norte, cabe aos
Estados, além de respeitar os Direitos Humanos, protegê-los, fazendo com
que sejam observados pelas empresas, e devidamente reparados quando
violados. Na espécie, no entanto, o Estado, via Poder Judiciário (Justiça do
Trabalho), até o presente momento falhou com todos os princípios, negando
o acesso à justiça (direito humano fundamental) e impedindo a reparação
de direitos econômicos e sociais apontados como violados na relação de
trabalho com a empresa acionada.
Destacam-se os dispositivos do Decreto 9571/18 aplicáveis ao caso:
"(...)
Art. 3º A responsabilidade do Estado com a proteção dos direitos
humanos em atividades empresariais será pautada pelas
seguintes diretrizes:
I - capacitação de servidores públicos sobre a temática de
direitos humanos e empresas, com foco nas
responsabilidades da administração pública e das empresas,
de acordo com os Princípios Orientadores sobre Empresas e
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas,
principalmente ações de:
a) sensibilização e promoção da educação contínua dos
recursos humanos da administração pública para o
fortalecimento da cultura em direitos humanos; e
b) capacitação dos recursos humanos da administração
pública para o tratamento das violações aos direitos
humanos em contexto empresarial, de seus riscos e de seus
impactos;
II - fortalecimento da consonância entre políticas públicas e
proteção dos direitos humanos;
(...)
VI - desenvolvimento de políticas públicas e realização de
alterações no ordenamento jurídico, a fim de:
(...)
b) estimular a criação de medidas adicionais de proteção e a
elaboração de matriz de priorização de reparações e
indenizações para grupos em situação de vulnerabilidade;
(...)
IX - criação de plataformas e fortalecimento de mecanismos de
diálogo entre a administração pública, as empresas e a
sociedade civil;
(...)." (grifou-se).
Ademais, nos termos do Decreto n.º 9.571/2018, verifica-se
responsabilidade social do Estado no que concerne à adoção de medidas
de reparação à violação de direitos humanos. Neste sentido o disposto nos
arts. 13, inciso VII, alínea "b", e 15, inciso I, do Decreto em epígrafe:
Art. 13. O Estado manterá mecanismos de denúncia e reparação
judiciais e não judiciais existentes e seus obstáculos e lacunas
legais, práticos e outros que possam dificultar o acesso aos
mecanismos de reparação, de modo a produzir levantamento
técnico sobre mecanismos estatais de reparação das violações
de direitos humanos relacionadas com empresas, como:
(...)
VII - incentivar a adoção por parte das empresas e a utilização
por parte das vítimas, de medidas de reparação como:
(...)
b) desculpas públicas;
(...)
Art. 15. A reparação integral de que trata o inciso IV do caput do
art. 14 poderá incluir as seguintes medidas, exemplificativas e
passíveis de aplicação, que poderão ser cumulativas:
...
I - Pedido público de desculpas;
Assim, ante as graves violações de Direitos Humanos constatadas neste processo, cumpre registrar pedido de desculpas públicas do Estado (Poder Judiciário - Justiça do Trabalho) à trabalhadora, pelo constrangimento derivado do impedimento do seu direito humano de acesso à justiça, como também do subsequente e indevido bloqueio de valores realizado por esta
Justiça do Trabalho nos autos do processo 0020489-40.2019.5.04.0007, comprometedor, inclusive, de sua subsistência, dada sua condição hipossuficiente.
Reconhecer as falhas do sistema judicial é necessário não só para atender
à finalidade de reparação integral de Direitos Humanos que foram violados
como também para que se possa extirpar adequadamente atos que não
representam a excelência da prestação jurisdicional deste ramo do
Judiciário, cuja criação e existência são diretamente vinculadas à
distribuição de justiça social. Afinal, os direitos laborais, além de
constituírem uma dimensão dos Direitos Humanos, representam, ainda,
direitos fundamentais que possibilitam a concretização de uma vida digna,
reconhecidamente ligados à manutenção da paz e à própria existência do
Estado Democrático de Direito, como se pode inferir da Constituição da
OIT e da Declaração de Filadélfia, de 1944.
Registra-se, por fim, que o Direito do Trabalho deve ser aplicado como
instrumento de garantia de promoção da dignidade humana e não ao revés,
sendo que a ação que o acompanha deve estar acessível de forma gratuita
a todas as pessoas, não podendo obstáculos opostos por lei
manifestamente inconstitucional e inconvencional ser transformados em
barreiras que, mais além de impedirem o acesso à justiça, o inibem,
inviabilizando por completo a efetividade dos direitos econômicos, sociais
e culturais e a possibilidade de realização de uma vida digna por parte das
pessoas que integram a classe despossuída, a classe trabalhadora.
Por todos os motivos expostos, decreta-se a nulidade na sentença que
extinguiu o feito sem resolução do mérito, sendo imperioso o retorno dos
autos à origem, para regular prosseguimento, em observância aos
princípios da celeridade processual (recomendando-se inclusão em pauta
preferencial, ante o atraso na prestação jurisdicional devido aos percalços
ora reconhecidos), e devido processo legal, inclusive sob o aspecto
substancial com seus consectários, vetando-se a cobrança de qualquer tipo
de custas ou despesas judiciais à demandante.
Nestes termos, dá-se provimento ao recurso da autora para declarar a
nulidade do processo a partir da sentença que extinguiu o feito, sem
resolução do mérito, proferindo-se novo julgamento em seu lugar, com
registro de desculpas públicas à parte autora, Sra. Kethleen Catiucia da
Silva Rios.
II. PREQUESTIONAMENTO.
Adotada tese explícita a respeito das matérias objeto de recurso, são
desnecessários o enfrentamento específico de cada um dos argumentos
expendidos pelas partes e referência expressa a dispositivo legal para que
se tenha atendido o prequestionamento e a parte interessada possa ter
acesso à instância recursal superior. Nesse sentido, o item I da Súmula 297
do TST e a Orientação Jurisprudencial 118 da SDI-1, ambas do TST.
Igualmente, é inexigível o prequestionamento de determinado dispositivo
legal quando a parte entende que ele tenha sido violado pelo próprio
Acórdão do qual pretende recorrer, conforme entendimento pacificado na
Orientação Jurisprudencial 119 da SDI-1 do TST.
Isto considerado, tem-se por prequestionadas as questões e matérias
objeto da devolutividade recursal, bem como os dispositivos legais e
constitucionais invocados pelas partes.
DESEMBARGADOR LUIZ ALBERTO DE VARGAS: Acompanho integralmente o voto do eminente Relator.
DESEMBARGADORA BRÍGIDA JOAQUINA CHARÃO BARCELOS: Acompanho o voto do Exmo. Desembargador Marcelo José Ferlin D'Ambroso.